‘É fundamental ter autonomia para sequenciamento genômico de vírus’, diz pesquisadora

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) — Os cientistas conhecem pouco dos mais de 500 mil vírus com potencial para causar doenças em humanos. O monitoramento constante desses vírus é uma área ainda negligenciada da ciência em todo o mundo, segundo a bióloga Emma Hodcroft, 34.

Atualmente associada como pós-doutora na Universidade de Bern, na Suíça, a epidemiologista molecular que nasceu na Noruega e cresceu entre Arlignton, no Texas (EUA), e Aberdeen, na Escócia, estuda há mais de uma década genômica de vírus.

No último ano, voltou sua pesquisa ao Sars-CoV-2. A partir de amostras disponibilizadas na plataforma Nexstrain, passou a produzir gráficos que acompanhavam o deslocamento das diferentes cepas do vírus no mundo todo e criou a plataforma covariants.org, que reúne todas as variantes do Sars-CoV-2 conhecidas, por mutações ou por região geográfica.

Além da importância de compreender o deslocamento em tempo real das variantes do vírus, o monitoramento pode apontar sequências com mutações importantes, do ponto de vista epidemiológico, explica.

“Foi assim que vimos as primeiras sequências da variante do Reino Unido, com uma mutação importante que, depois, constatou-se estar associada a maior transmissibilidade”, afirma.

Agora, as variantes, que já são seis conhecidas em todo o mundo, parecem causar uma preocupação maior pelo seu potencial na ação das vacinas. “Uma das boas notícias é que as vacinas parecem ser facilmente atualizadas.”

De sua casa, Hodcroft conversou com a reportagem por meio de vídeo.

Confira a entrevista abaixo:

Pergunta – De onde partiu a iniciativa de fazer a plataforma covariants.org e como enxerga essa ferramenta como sendo útil para vigilância de vírus em geral?
Emma Hodcroft – A criação da plataforma veio na esteira de um trabalho que realizei no verão de 2020 sobre a variante EU.1, que foi primeiro identificada na Espanha e rapidamente se espalhou por todo o continente europeu. Quando estava monitorando essa variante, precisava conseguir identificar quais sequências eram ligadas a ela e quais eram da linhagem original B.1, e aí comecei a perceber que todos os países têm uma quantidade considerável de sequências próprias. Mais do que isso, eu pude acompanhar, em tempo real, a movimentação da variante espanhola por todo a Europa, o que está em parte relacionado ao comportamento das pessoas no verão. Eu recebia pedidos de pesquisadores que queriam utilizar meus scripts o tempo todo, então a criação da plataforma foi para ter em um único lugar, constantemente atualizado, toda essa informação.

Hoje se fala muito em vigilância genômica, ou o monitoramento de novas variantes, feito a partir do sequenciamento de amostras, mas existe uma discrepância entre o quanto alguns países conseguem sequenciar em relação a outras. Acha que existe uma porcentagem ideal de quanto deve ser sequenciado para conseguir identificar novas variantes?
EH – Poucos países têm o tipo de sistema de vigilância que o Reino Unido montou, e mesmo assim eles não sequenciam todas as amostras que coletam. O cálculo deve ser feito com base nas limitações do país e quais são as suas possibilidades verdadeiras. Pode ser que os primeiros cinco casos com uma variante nova não sejam identificados, mas o cálculo deve levar em conta quantos casos com a nova variante surgiram até ser possível identificá-la. Essa identificação foi feita após o sequenciamento de quantas amostras? 5%? 10%? Ou 1%? Ok, então vamos sequenciar pelo menos 1% de todas as amostras.

O sequenciamento genômico é altamente comprometido em países como o Brasil, onde os equipamentos e os insumos são caros e não há muito investimento. Como acredita que outros países, como EUA e Inglaterra, podem ajudar no sequenciamento global de vírus emergentes?
EH – Acredito ser uma ideia, embora na prática possa ser complicado. Mesmo esses países demoraram muito tempo para conseguir manter uma boa capacidade de sequenciamento e eles vão focar seus esforços neles próprios. Contar com outros países não é a abordagem que acho ideal na ciência. Mas, claro, em cenários de emergência global, se um país não tem como realizar sua própria vigilância genômica e quer enviar amostras para serem sequenciadas no exterior, isso não deve impedi-lo, mas a longo prazo acredito ser mais produtivo criar sistemas de vigilância que deem autonomia para os próprios países.
No caso do Brasil, há o conhecimento e o corpo técnico qualificado para fazer sequenciamento genômico, o que não tem é investimento, além de faltar equipamentos, que são caros, ou reagentes. E esses problemas são mais fáceis de serem resolvidos. Há soluções que são mais práticas. Eu espero que a pandemia realmente traga um olhar e uma preocupação para a questão de vivermos em um mundo global. Uma variante que surge na África do Sul ou em Manaus deve também causar preocupação em outros países, pois ela pode gerar novos surtos ou até mesmo acabar com os esforços de vacinação. O mundo todo se beneficia quando há um conhecimento global da evolução da Covid-19, e mesmo após a pandemia, pense em toda a rede de informação produzida que pode ser usada para outros vírus.

A sua plataforma é de acesso aberto em relação aos dados de sequências e monitoramento das variantes. Qual a sua opinião a em relação a dados que sejam de extrema relevância científica serem disponibilizados de forma universal e gratuita para todos?
EH – Essa é uma questão interessante. De um ponto de vista teórico, é fácil argumentar que esses dados sejam abertos e acredito que estaríamos em uma situação global bem complicada se a primeira sequência do Sars-CoV-2 não tivesse sido colocada online. Mas é importante colocar as coisas em contexto. A primeira é que o meio acadêmico sofre grande pressão por publicação. Publicar suas descobertas em artigos científicos é a moeda corrente de um cientista, é como ele ou ela consegue uma promoção, um financiamento para sua pesquisa ou ser contratado, e se esse cientista colocar as suas sequências online e alguém publicá-las primeiro, ele perde a prioridade da descoberta, e infelizmente na ciência ser a segunda pessoa a publicar algo não é tão bom. Então é difícil dizer: ei, sabe esse trabalho árduo que você fez, isso tudo não importa, você precisa divulgar seus dados para todos. A pressão em cima dos cientistas é muito forte e muitos têm medo de fazer isso, de forma compreensível.
O outro ponto é no caso dos países emergentes. Há uma consciência de como foi difícil obter aqueles dados, o financiamento é precário, não há investimento em pesquisa básica, e depois de muito trabalho eles conseguiram gerar aquelas sequências e é preciso dar crédito a eles, inclusive para depois argumentarem para fazer novos pedidos de financiamento. Hoje tratamos apenas dos sintomas de um sistema deficiente, e não resolvemos o problema, mas acredito que é preciso dar alguma garantia aos pesquisadores de que eles não vão ser prejudicados por um sistema mais sustentável, em que os dados são todos abertos. O momento atual possibilitou de uma certa forma tentar equilibrar esses dois pontos, como ter dados que são úteis para cientistas do outro lado do mundo sem que isso signifique perder a prioridade científica. Assinar termos de responsabilidade para acessar esses dados é uma forma, em que você diz claramente que não vai ‘roubar’ esses dados, mas sim trabalhar em colaboração com os autores.

Recentemente, uma nova variante surgiu nos EUA, no sul do estado da Califórnia. O que sabemos até o momento sobre ela e sobre outras variantes que possam surgir?
EH – Nos EUA, a vigilância dos estados é muito discrepante, com alguns estados sequenciando absolutamente tudo enquanto outros quase não geram nenhuma sequência. A última vez que realizei uma análise [no dia 18 de fevereiro], havia pouco mais de 40 amostras dessa variante. Agora, com o novo governo, houve uma melhora no sequenciamento em todo o território. Essa variante que surgiu na Califórnia [chamada CAL.20C] ainda está muito concentrada nesse estado, mas ela já se espalhou quase que pelo país inteiro. É difícil ainda dizer se ela é tão mais transmissível quanto, por exemplo, a B.1.1.7 [do Reino Unido], mas afirmar algo do ponto de vista epidemiológico de uma variante quando o sequenciamento é baixo também é complicado. É preciso ter muito cuidado para não dar características ao vírus que podem estar associadas ao comportamento humano, como, por exemplo, pessoas que viajaram no feriado de Ação de Graças ou durante o Natal e levaram o vírus consigo.

Como identificar e descrever novas variantes pode ser útil para a saúde pública?
EH – Acho que o primeiro ponto, antes de ver se existe alguma mutação potencialmente mais danosa ou transmissível, é monitorar o seu deslocamento. De novo, voltando para a variante espanhola, ela não tinha absolutamente nada de especial, não afetava em nada a transmissão, mas ainda assim pudemos monitorar como ela se espalhou por todo o continente europeu em um curto espaço de tempo devido ao comportamento humano, e isso jamais seria possível sem sequenciamento. Depois, com mais dados foi possível ver que ela não era mais transmissível.
Já a vantagem mais evidente é quando uma nova variante traz uma mutação que tem um efeito claro em como o vírus infecta e causa a doença, como é o caso da B.1.1.7. Nesse sentido, a variante ajudou também a ajustar a comunicação do governo britânico com a população porque a alta de casos no sul de Londres não podia estar simplesmente associada a um grande número de pessoas que não respeitavam as medidas protetoras. O governo investigou e observou que, sim, havia uma variante mais transmissível. Nesse sentido o monitoramento pode auxiliar políticas de saúde pública.

O que sabemos até agora sobre o impacto das novas variantes na eficácia das vacinas e nos testes diagnósticos?
EH – Até onde eu sei, as novas variantes, à exceção daquela que surgiu na África do Sul e talvez a do Brasil, não têm tanta ação nas vacinas, mas as pesquisas ainda estão em andamento. O que parece preocupar é a mutação E484K, presente nas variantes sul-africana e manauara. Basicamente, essa mutação faz com que os anticorpos não reconheçam tão bem assim o vírus, e isso pode afetar a proteção do sistema imune. Uma das boas notícias é que as vacinas parecem ser de fácil atualização, e as vacinas que usam o vírus inteiro, com metodologia mais tradicional, parecem não sofrer tanto com essas mutações. Em relação aos testes, a variante britânica afeta de certa forma os testes RT-PCR. Basicamente, os exames procuram três genes do vírus, dois na proteína S do Spike e um gene fora dessa proteína, e a variante britânica tem uma deleção em um desses genes, então o PCR não capta esse terceiro ponto. Mas ele capta os outros dois, o que só quer dizer que você consegue uma confirmação do vírus e ainda tem um bônus de saber que carrega a linhagem do Reino Unido.

Você acredita que a nossa sociedade como um todo vai sair dessa pandemia com um melhor conhecimento da ciência, sua importância e do financiamento para pesquisa e de como a vigilância global de vírus pode desempenhar um papel fundamental?
EH – Eu espero de verdade, embora seja otimista. Mas é importante notar como ter uma infraestrutura básica para ciência ajudou alguns países inclusive a fazerem a primeira determinação de casos de Covid-19. O benefício de ter investimento em ciência é claro. Hoje é a pandemia, amanhã pode ser um surto de uma doença endêmica ou de uma nova epidemia. A autossuficiência, não depender de outros países para ter sua própria vigilância de doenças emergentes é fundamental. É um cenário de ganho para todos. Antes de começar a trabalhar com Sars-CoV-2, eu trabalhei com outros vírus pouco conhecidos. Em um bom momento da minha pesquisa eu tinha 800 sequências, hoje temos mais de meio milhão de sequências disponíveis no GeneBank [uma espécie de biblioteca genética virtual]. Eu espero que tudo que aprendemos com essa pandemia possa ser usado para criar essas infraestruturas de sequenciamento, porque nós somos uma sociedade global, nós vivemos em um mundo globalizado. Esse é o nosso preparo para o que vier pela frente.

Fonte Click PB

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